As PPP são o "conto moral" onde se revela a imoralidade da nossa cultura política

José Manuel Fernandes
Público, 21/06/2013

As PPP não foram invenções dos banqueiros e dos construtores civis, foram criação de políticos desejosos de "mostrar obra"
Sempre que se corta um subsídio, se corta uma pensão ou mesmo se se cortam as unhas, não falta quem grite, indignado: "Só não cortam nas PPP!" "Cortar nas PPP" tornou-se na poção mágica dos entendidos que estão sempre contra os "cortes cegos" mas são incapazes de sugerir "cortes racionais". A não ser, claro, o corte nas PPP. Os números, de resto, parecem vir em seu auxílio. Ainda esta semana foi conhecida versão preliminar do relatório da comissão parlamentar de inquérito às PPP e nele escrevia-se que só das parcerias rodoviárias e ferroviárias ainda haverá a pagar mais 11,7 mil milhões de euros. Um escândalo, gritam os profissionais da indignação. Um escândalo, confirmo eu, mas um escândalo que é sobretudo consequência da cultura política dominante no país. A cultura do passado e a cultura de hoje.
Há dois motivos principais para termos uma factura tão elevada a pagar. Ambos chocantes. Por um lado, boa parte dos contratos das PPP foram não apenas mal negociados, foram criminosamente negociados. Mas, por outro lado, esses contratos foram feitos porque era enorme a pressão política e eleitoral para "fazer obra". Excepto uma ou outra situação pontual em que a obra talvez não tenha sido feita e que são referidas no relatório, estamos a pagar as PPP porque houve governos que quiseram construir - e construíram - estradas e linhas férreas sem terem dinheiro para as pagar. Ou seja, se uma parte da factura deriva de maus contratos que beneficiaram de forma indecorosa empresas de construção, grupos bancários e alguns escritórios de advogados, o grosso da factura vem de se ter espalhado betão pelo país todo, mesmo onde tal era mais um luxo do que uma necessidade.
Recapitulemos o essencial do processo e os seus protagonistas. Primeiro que tudo, tivemos a Ponte Vasco da Gama. Ao princípio o modelo imaginado para a financiar parecia uma boa ideia: entregava-se a concessão a uma empresa privada, esta cobrava as portagens na nova ponte e, na velhinha 25 de Abril, e os utilizadores acabariam por pagar a grandiosa obra. Este esquema começou a ruir no dia do "buzinão": os utilizadores, afinal, não queriam pagar a nova ponte. Em boa parte porque esta não os servia devidamente, já que em vez de ligar o Barreiro a Chelas, servindo zonas muito povoadas, ligava os Olivais à zona ainda quase rural de Alcochete. A partir desse momento passaram a ser os impostos a compensar as portagens que, por terem sido quase congeladas, deixaram de ser suficientes para pagar a nova ponte. Já vamos em nove renegociações e o que podia ter sido um bom negócio para o Estado tornou-se num negócio chorudo para a concessionária.
Mas o pior veio a seguir. Guterres, que disse em campanha ter uma paixão pela educação e não pelo betão, não resistiu à tentação de continuar a construir auto-estradas. Apesar de serem anos de vacas gordas, faltou-lhe o dinheiro, mas não a imaginação. Graças a João Cravinho, inventou as Scut: o Estado não gastava nada a construir, os utilizadores não pagavam portagens, a factura ficava para os contribuintes do futuro. Foi assim que começou a engordar a factura das PPP. De um lado, políticos que queriam mostrar obra e um eleitorado que só media o progresso em quilómetros de alcatrão; do outro, construtoras e banqueiros em busca de negócios com pouco risco e muito lucro; como bónus, uma fartura de estaleiros capazes de absorverem muita mão-de-obra e de iludirem o desemprego. Parecia que ganhavam todos, mas perdia quem um dia teria de pagar a factura: nós.
Muito cedo houve quem alertasse para a perversidade deste esquema, que até foi tema de campanhas eleitorais. As auto-estradas trariam o progresso ao "interior esquecido e despovoado" e não haveria problema com o que se teria de pagar no futuro, pois o "progresso" induzido pelo betão geraria as receitas necessárias. Nada disto aconteceu, mas mesmo maiorias eleitas para inverter esta loucura não o fizeram, como sucedeu com os governos do PSD e CDS de 2002 a 2005. Ninguém queria dizer às populações que não lhes daria aquilo com que elas sonhavam desde os tempos de Fontes Pereira de Melo: uma via rápida à porta de cada aldeia.
As PPP tornaram-se assim num expoente do "viver acima das nossas possibilidades": como não tínhamos dinheiro para tanto betão, nem nos podíamos endividar mais, arranjava-se quem se endividasse por nós com a promessa de que pagaríamos lá mais para diante. Se a primeira responsabilidade é dos políticos que promoveram esta loucura, a verdade nua e crua é que o eleitorado não só aplaudiu a "obra feita" como reivindicou mais e mais. É por isso que as PPP também são culpa do nosso atraso cultural e do prestígio eterno do "fontismo" como sinónimo de progresso. Poucos remaram contra esta maré - o Tribunal de Contas, alguns políticos, alguns colunistas, quase todos descartados como "velhos do Restelo", inimigos do interior ou insensíveis sociais.
Os últimos anos, os anos do socratismo, foram especialmente delirantes. Primeiro porque era cada vez mais evidente que o desvario de multiplicar quilómetros de auto-estrada era apenas isso mesmo: um desvario. Se ao princípio ainda se podiam encontrar fluxos de trânsito para justificar uma via rápida, conforme Portugal se ia transformando no país europeu com o maior número de quilómetros de auto-estrada por habitante, menos tráfego tinham as novas vias. E mais surreais eram os contratos de concessão.
Aquilo que de início era sobretudo uma má ideia, que atirava para as gerações futuras o custo de infra-estruturas que até eram necessárias, tornou-se numa fraude e num negócio escandaloso em torno de obras desnecessárias. No relatório da comissão de inquérito podem encontrar-se abundantes exemplos dessa gestão danosa da coisa pública. Começava-se por justificar a obra com base em "estudos" que previam fantasiosos fluxos de tráfego - isso aconteceu tanto em muitas nas novas estradas como num dos mais ruinosos negócios de todos os tempos, o do Metro ao Sul do Tejo, onde o preço por passageiro e por quilómetro transportado suportado pelos nossos impostos é 9,3 vezes superior ao registado no Metro de Lisboa. Depois faziam-se contratos que garantiam aos novos concessionários taxas de rentabilidade do capital que nem uma Dona Branca seria capaz de prometer. Por fim enchiam-se os acordos de cláusulas, minuciosamente desenhadas por exércitos de advogados, que colocavam todo o risco do lado dos contribuintes e garantiam aos investidores uma vida santa, com boas receitas e sem riscos. Tudo isto garantido pelo erário público, pois até quando a Estradas de Portugal chegou ao limite da sua capacidade para assumir encargos, logo lhe chegou a necessária "Carta de Conforto" assinada por Mário Lino e Teixeira dos Santos.
A quantidade de abusos cometidos ao longo deste processo é tal que só espero - mas com pouca esperança - que algo de substantivo venha a ser apurado pelo Ministério Público, para onde seguirá o relatório da comissão parlamentar. Mas, infelizmente, isso não nos alivia a factura a pagar. É possível renegociar muitos destes contratos, baixar as chorudas margens de rentabilidade e partilhar de forma mais equilibrada os riscos, e isso até já tem vindo a ser feito com resultados impressivos. Mas nunca se farão desaparecer da paisagem as auto-estradas vazias, os viadutos redundantes, os túneis quilométricos e tudo o mais que um país a achar que era rico mandou construir sem ter dinheiro para pagar a pronto. Pagou a crédito, e são esses créditos, que escaparam por manhas estatísticas aos limites comunitários do défice e da dívida, que agora nos atormentam sob a forma de PPP.
Este é um "conto moral" sobre os nossos hábitos e a nossa cultura política, e apesar da imoralidade evidente de alguns dos seus agentes, a verdade é que ainda não extirparmos a doença do eterno retorno do "fontismo". Ou então não andariam por aí, como se nada fosse com eles e até a serem escutados com devoção, alguns dos principais figurões de todo este processo. Como não se continuaria a reclamar pelo que não temos dinheiro para ter.

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