José António Saraiva recorda o seu tio José

SOL 28 de Julho, 2012
José António Saraiva

José António Saraiva, director do SOL, recorda José Hermano Saraiva, o seu «Tio José».

Para mim era o ‘Tio José’. Na família Saraiva são quase todos Josés ou Antónios. O meu Tio José teve cinco filhos, e os mais velhos chamam-se José, o primeiro, e António, o segundo. O meu pai era António José, eu sou José António, o meu irmão mais velho é António Manuel.
O meu Tio José era o meu tio rico. Tinha um enorme Buick preto onde nos levava às festas em casa dos meus avós. O meu pai foi demitido do ensino por razões políticas e depois emigrou, enquanto o Tio José ocupou lugares importantes, tendo sido deputado, ministro e embaixador.
Além disso foi advogado, professor do liceu, reitor, professor universitário, director de instituições públicas – e, depois do 25 de Abril, figura popularíssima da televisão. Por um período curto também foi director de um jornal (o Diário Popular).
O acaso do destino levou a que a sua última grande entrevista à imprensa escrita tenha sido feita por mim. Foi por ocasião dos seus 90 anos. Já tinha muitas dificuldades físicas, não conseguia erguer-se sozinho, mas conservava intacta a lucidez e o vigor mental. Falava com grande convicção, acentuando as sílabas. Estava muito pessimista sobre o estado do país. Mas o que verdadeiramente o entusiasmava era falar do passado. Do seu, mas sobretudo do passado de Portugal.
No meio de tantas tarefas tão diferentes, sempre me interroguei sobre qual seria a sua verdadeira vocação. Advogado? Político? Professor? Historiador? Divulgador?
Nessa última entrevista, fiz-lhe notar que ele tivera duas vidas perfeitamente distintas: uma até 1974, quando acabou a carreira política (era na altura embaixador de Portugal no Brasil), outra a partir de 75, quando iniciou uma fulgurante carreira televisiva. E a essas duas vidas corresponderam duas moradas: a primeira no Bairro do Restelo, numa pequena vivenda de dois pisos, a segunda numa quinta com uma casa desenhada por ele, onde ia incorporando antiguidades (pórticos, colunatas, painéis de azulejo) compradas aqui e ali. Perguntei-lhe de qual dessas vidas tinha gostado mais. Respondeu-me que nunca pensara nisso dessa forma – e depois de reflectir um pouco disse-me que preferia a segunda.
A resposta não me surpreendeu. Ele foi advogado, com escritório na Rua do Ouro, mas nunca pensei que fosse sê-lo até ao fim da vida. Ele foi político, mas nunca foi um político. Ele foi historiador, mas investigar não chegava para o preencher. Ele foi professor, mas gostava de ter uma plateia mais vasta do que a da sala de aula. Por isso, o que verdadeiramente o entusiasmava era fazer televisão. Dizia muitas vezes nos seus programas: «Os meus caros telespectadores…» – e era verdade. Ele precisava de ter espectadores.
Bem no fundo, julgo que ele era um actor que desempenhava brilhantemente o papel da sua própria personagem e de outras pelas quais se apaixonou. Umas vezes era José Hermano Saraiva, outras encarnava grandes figuras históricas como D. João I, D. Nuno Álvares Pereira ou Luís de Camões. E, na sua pele ou na de outros, usava a enorme bagagem intelectual que foi acumulando ao longo da vida. Por isso, por essa qualidade de actor, atraía tanto as audiências: ele sabia comunicar directa e arrebatadamente com o seu público.
Mas se na vida pública era um actor, em privado era um eremita. Um solitário às voltas com os seus livros, as suas investigações, as suas hipóteses. E a enorme soma de conhecimentos que acumulava solitariamente punha depois a render nas suas aparições públicas.
Um eremita em casa, um actor em público. Estas duas vertentes quase opostas conviviam nele em perfeita comunhão. Mais: precisavam uma da outra. Era assim que eu o via, era assim que ele era.
Em 1969, quando ocupava a pasta da Educação, com 50 anos, dizia-me: «Sabes Zé, vou entrar num plano inclinado. A partir de agora é sempre a cair. Sou ministro, a primeiro-ministro não chego, portanto a minha trajectória será sempre descendente». Viu-se. Teve direito a uma segunda vida quase tão longa como a primeira e que suplantou a outra em prazer para ele e utilidade para a maioria dos portugueses.
Enfrentou várias vezes a morte. Teve dois enfartes graves ainda em jovem, um edema pulmonar duplo há meia dúzia de anos, outros achaques. Numa ocasião confidenciou-me: «Olha, Zé, explodi! O meu sangue esguichou a dois metros de altura». Foi quando lhe puseram um pacemaker. Mas tinha sempre alguma coisa para fazer que o prendia à vida. «A primeira coisa que pensei quando acordei do coma foi que não podia morrer, pois não terminara a gravação da História de Portugal em DVD», revelava-me após mais uma passagem pelo hospital.
Agora a morte apanhou-o. Não foi ela que o venceu mas ele que desistiu. Tinha deixado há meses de gravar para a RTP os programas que o agarravam à vida. E sem esse estímulo cansou-se rapidamente de viver.
Há pessoas que não deviam morrer. O meu Tio José era uma delas: ao ser sepultado, foi como se sepultassem um tesouro. Ali ficou para sempre, sem poder ser usado, um imenso manancial de sabedoria. Cabe-nos a nós, que prosseguimos a caminhada, empunharmos com dignidade o facho dos que vão ficando pelo caminho.

Comentários

Anónimo disse…
Sem dúvida, um homem e "pêras" (como quem diz um homem e tanto).
Bem Haja! Que Deus o tenha!

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