Quando a mulher é - literalmente - uma escrava

Henrique Raposo (www.expresso.pt)
8:00 Sexta feira, 1 de junho de 2012

À partida, nós sabemos que a condição feminina no Irão e arredores é terrível. Mas, quando lemos livros de iranianas, descobrimos que o nosso preconceito inicial é demasiado leve . A realidade pode ser pior do que o preconceito mais carregado. Estas memórias de Shirin Ebadi (Prémio Nobel da Paz em 2003) mostram como a vida das mulheres iranianas é um excesso de realidade difícil de aceitar. Até um cafre pessimista tem dificuldade em encaixar aquilo que se segue.

Shirin Ebadi (n.1943) beneficiou do ambiente de emancipação feminina promovido pelo Xá . É por isso que conseguiu chegar ao topo da magistratura. Todavia, esta abertura progressista não salvou a legitimidade de Reza Pahlavi aos olhos de Shirin Ebadi. Aquela era uma dinastia com raízes pouco profundas (em 1926, Reza Xá, o pai de Reza Pahlavi, impôs a nova linhagem) e, acima de tudo, a imagem do Xá estava comprometida por causa do golpe da CIA de 1953, que depôs o primeiro primeiro-ministro constitucional da história do Irão, Mossadegh. A cada linha deste livro, sente-se que o golpe da CIA era (e ainda é) uma espinha encravada no orgulho deste país com mais de 2000 anos de história. O Xá era visto como um títere dos EUA e essa percepção contribuiu para a revolução de 1979, que juntou várias forças políticas e não apenas os islamitas de Khomeini.
Esperando encontrar um governo constitucional ao virar da esquina, Ebadi participou na revolução. Mal ela sabia que os islamistas iriam resgatar o movimento para impor um regime ainda pior, sobretudo para as mulheres. Poucos dias após o derrube do Xá, Shirin Ebadi foi destituída do cargo de juíza. Motivo apresentado pelos barbudos? Uma mulher não podia ser juíza ("uma vitória revolucionária exigia a minha derrota"). De repente, a Pérsia transformou-se numa Dixieland com a mulher no lugar do escravo. E a comparação com a escravatura não é um mero exercício de estilo, porque a teocracia iraniana começou a tratar as mulheres da mesma forma que os regimes esclavagistas tratavam os escravos: a mulher deixou de ser uma pessoa protegida pela constituição, e passou a ser uma mercadoria tutelada pelo direito à propriedade. Desde 1979, a vida de um homem iraniano vale literalmente o dobro da vida de uma mulher; o depoimento de uma mulher em tribunal tem metade do valor; uma mulher não pode ser testemunha num caso de homicídio; apedrejar mulheres tornou-se sentença jurídica; o homem pode adquirir três mulheres (além da esposa oficial). Perante este descida aos infernos misóginos, Shirin Ebadi ergueu a sua segunda carreira: advogada das mulheres e dos dissidentes.

Ao longo dos anos, a nossa heroína foi conquistando fama devido à forma corajosa como aceitou casos como este: uma menina de uma família muito pobre foi violada e assassinada por dois homens; o tribunal decidiu que a família da vítima tinha de pagar uma pequena fortuna para que a sentença dos réus fosse executada ("dinheiro de sangue"); como é óbvio, a família não tinha esse dinheiro e, dessa forma, o sistema jurídico beneficiou os assassinos masculinos em detrimento da vítima feminina. Ao defender esta e outras famílias, Ebadi ajudou a quebrar o código de silêncio sobre o regime, ou seja, esta mulher foi uma das forças motrizes das manifestações de 1999, 2003 e 2008/09. Há poucos Prémios Nobel tão bem atribuídos.

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