Nas democracias só há presente

Público 2012-06-02 José Pacheco Pereira
Há um dado essencial na vida política democrática: no futuro estamos todos mortos. Do futuro não sabemos nada

Um dos argumentos que circulam para legitimar a política dos nossos dias é o de que temos que actuar no sentido de não onerar as gerações futuras com os encargos do presente. Em si é um truísmo, que vale o mesmo que todos os truísmos, ou seja, pouco. A verdade deste truísmo é auto-evidente: cada geração, a seu modo, "hipoteca" o futuro para viver o presente. Pode depois discutir-se o grau dessa "hipoteca", e considerar que ela é demasiado onerosa e desequilibrada, a favor das gerações do presente, destruindo as possibilidades de gerações futuras terem uma vida decente. O problema existe e é real, mas em democracia não pode ser colocado assim: o modo como se actua no presente tem um conjunto de regras e condicionantes. O "futuro" não entra deste modo no presente, nem a ideia de que o presente deixa "heranças" para o futuro pode ser vista de forma linear, porque não só há muitas "heranças" ao mesmo tempo, como também o "futuro" escolhe muitas vezes desenvolver-se por vias muito diferentes das que nós pensamos no presente ele ir ter.

O dilema destas coisas é que em democracia nunca há "futuro" no presente, como também não há qualquer garantia de que as escolhas eleitorais sejam as "melhores", nem que sejam necessariamente corrigidas no próximo acto eleitoral. O sistema político que entrega aos cidadãos as decisões fundamentais pelo voto, que subordina os resultados eleitorais a uma lei e a um direito que teve ele próprio uma origem no voto, e que se sustenta por um conjunto de princípios ideológicos, aceites livremente pelos homens, como é o caso dos chamados "direitos do homem", não vive no futuro, mas no presente. Pode tomar decisões com um enorme impacto no futuro, mas não as toma em nome desse "futuro", a não ser pela mediação da ideologia ou da religião. 

Numa democracia não há teleologias da história, não há utopias do futuro, não há "paraísos celestes", onde o homem pode alcançar o que não conseguiu nesta terra, mas apenas a "ideia nova" que a Revolução Francesa trouxe, a da "felicidade". E a felicidade não se vive no futuro, nem o "bem comum" dos presentes pode ser moldado ao hipotético "bem comum" do futuro. Nem, aliás, os eleitores deixam, porque nunca votam em sacrifícios do presente, em nome do bem-estar hipotético do futuro. Pode ser uma das grandes imperfeições da democracia, mas é assim que as coisas funcionam e o modo como se pretende "corrigir" esse defeito leva a sistemas totalitários e a uma destruição do "futuro" muito mais acentuada do que a imperfeição do presente. 

Em democracia, não há política que não seja feita para os homens do presente, para a vida que eles têm e não para a que os seus filhos irão hipoteticamente ter. E digo sempre "hipoteticamente" porque o modo como escolhemos o futuro e as suas condicionantes tem muito a ver também com as opções do presente, para as pessoas do presente. Como, insisto, não há "paraísos celestes" em democracia, tudo é terrestre, decidido e feito para hoje. Aliás, é mesmo assim que actuam os que nos falam das "gerações do futuro". O argumento circulante é por isso ideológico, implica alguns pressupostos que são pouco democráticos, e é traduzido por políticas para o presente e só para o presente. É por isso que o argumento da "herança" é instrumental na política do presente e pouco tem a ver com o futuro, muito menos com os nossos "herdeiros". A realidade é que ninguém sabe o que vai moldar o futuro, muito menos se são essas opções feitas em seu nome que serão as determinantes. 

Vamos à questão da "herança", que aparece no discurso político actual apenas associada à dívida e aos seus encargos, assim como a rendas e pagamentos futuros, como é o caso dos que decorrem das PPP. Este é um facto impossível de negar e tem todo o sentido trazê-lo à discussão do presente. Porém, convém fazer essa discussão de modo diferente da que se faz nos dias de hoje. O modo como este argumento é usado pelos propagandistas do Governo é, como disse antes, justificar as medidas do presente, e no caso actual todas as medidas do presente, em nome das "gerações futuras". É um discurso político de legitimação que instrumentaliza uma parte dos factos para justificar políticas concretas, mas, quando analisado, usa a "herança" como "argumento único", esquecendo que das mesmas políticas haverá "heranças" muito contraditórias, muitas das quais são bem perniciosas para as "gerações futuras".

Por exemplo, um dos problemas estruturais de Portugal, decisivo para a nossa competitividade, que não depende apenas de salários baixos e da erosão dos direitos laborais, é o da baixa qualificação da mão-de-obra. Este problema é conhecido, identificado e apontado como um dos principais impeditivos ao desenvolvimento português. O Governo Sócrates usou-o como argumento para as Novas Oportunidades, um programa que tinha virtualidades, mas que foi rapidamente abastardado e transformado num "programa de bandeira" do PS, oferecendo diplomas desqualificados e alimentando estatísticas artificiais de adesão e sucesso. Saliente-se, aliás, que quer neste caso das Novas Oportunidades, quer no programa Magalhães, o PSD na oposição procedeu sempre por omissão, criticando os custos e os estratagemas de financiamento, mas evitando sempre fazer críticas de fundo. Os programas eram "populares" e por isso o PSD não lhes tocou. Sei muito bem disso, porque nestas colunas fiz a seu tempo críticas de fundo aos dois programas e o PSD nunca as assumiu, com a sua equipa da educação a preferir o silêncio. Hoje a história é reconstruída retrospectivamente.

Ora, quer o fim das Novas Oportunidades e a sua substituição por coisa nenhuma, quer toda uma série de medidas no sector de educação, enroupadas num discurso legitimador mas que são, na verdade, medidas de contenção de gastos - o número de alunos por turma é um caso -, vai ter o efeito de não só prolongar a baixa qualificação da mão-de-obra nacional, como de agravá-la. Eis uma "herança para as gerações futuras" de que ninguém fala. O mesmo se pode dizer sobre a depauperação da classe média, que destrói o potencial de dinamismo social no "futuro" e da destruição do tecido produtivo, que nos vai fazer arrancar do quase zero, se arrancarmos, do aumento da exclusão social, do desequilíbrio das relações laborais, da crescente desertificação do interior. Em suma, não sabemos que papel vai ter no futuro o empobrecimento do presente, mas presumo que não vai ser positivo. 

Claro que tudo isto tem causas no presente e algumas dessas causas têm a ver com a política do passado imediato. Hoje isso é evidente, e tem todo o sentido a punição política, sempre imperfeita, mas existente, sobre esses responsáveis. Mas ainda estamos a mover-nos no terreno sólido, o da política do presente. Porque se aplicarmos, com o insight de sabermos o que aconteceu, para o passado, o argumento da "herança", então temos que ignorar que muitas opções tomadas, em particular com o recuo de pelo menos duas décadas, eram opções inteiramente racionais à época e pareciam ser aquelas que mais acautelavam o futuro. E não foram.

Há um dado essencial na vida política democrática: no futuro estamos todos mortos. Do futuro não sabemos nada. Ponto.

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