Eles querem um "futuro decente". Mas não lá muito honrado

Público 2012-06-29 José Manuel Fernandes

A origem dos nossos males não é o memorando da troika, é uma economia e um Estado viciados em dívidas


António Hespanha é uma pessoa muito observadora. Soubemo-lo no último Prós e Contras. Quando vai a um supermercado e olha para os carrinhos de compras dos outros clientes, acha que as suas escolhas não são racionais. Não sei o que o douto professor conhecerá da vida das outras pessoas para fazer essa avaliação, mas se calhar não necessita de saber muito. Ele faz parte daquela elite que julga conhecer as nossas necessidades mesmo quando são apenas nossas. É também dos que acham que os que pensam diferente sofrem de uma irremediável "impiedade" que faz deles monstros em potência. Até porque é um dos subscritores do manifesto "por um futuro decente", que junta gente que, como ele, só pensa no bem do próximo - desde que o próximo aceite que sejam eles a dizerem o que é o seu bem.

Nesse manifesto defende-se que cabe ao Estado "organizar a sociedade em bases colectivas". Naturalmente que, se isso sucedesse, os clientes dos supermercados não fariam compras irracionais - talvez até nem fizessem compras, pois as prateleiras estariam vazias ou só teriam os produtos que iluminados com "sensibilidade social" como o prof. Hespanha entendem ser necessários. E também não haveria maliciosas promoções oferecidas pelos gananciosos dos donos dos supermercados, apenas o que o Estado entendesse correcto - "em bases colectivas". 

Parece exagero, mas não é. Nesse manifesto, que juntou as luminárias do costume a uns trânsfugas do PS, também se diz que todos os nossos problemas têm origem no acordo com a troika. Como se sabe, há um ano, antes desse acordo, nós não tínhamos problemas, só tínhamos soluções. Quando não tínhamos soluções, tínhamos pelo menos "uma visão". E, claro, estávamos prenhes das "ideias generosas" que, de acordo com os subscritores do documento, faltam aos nossos responsáveis mas sobram nos corações sensíveis do prof. Boaventura, do coronel Lourenço ou do ex-sindicalista Da Silva.

Todo o manifesto se pode resumir a duas ideias centrais. A primeira é que não podemos empobrecer. A segunda é que não devemos pagar as nossas dívidas. Chama-se-lhe, eufemisticamente, uma "negociação com todos os credores" que "não pode deixar de ser dura". Ou seja, propõe-se como solução para o empobrecimento um caminho que nos tornaria irremediavelmente mais pobres.

É certo que o prof. Hespanha se apresenta apenas como historiador, mas é estranho que, tendo passado o Prós e Contras a apelar a que se olhasse para a realidade, seja de uma total cegueira quanto a factos bem reais. E um deles é que Portugal nunca conseguiu, desde pelo menos 1950, equilibrar as contas externas. Mesmo nos períodos em que a nossa economia cresceu mais depressa, sempre importámos mais do que exportámos. Fomo-nos safando graças às remessas dos emigrantes, à ajuda dos fundos europeus e ao investimento externo, até que chegou o tempo do crédito fácil e barato. Temos a dívida que temos porque, só desde 1995, fomos acrescentando todos os anos à dívida externa o equivalente a dez por cento do PIB. Porque consumimos sistematicamente mais dez por cento do que aquilo que produzimos. Porque vivemos a crédito e foi esse desequilíbrio que causou os nossos problemas.

Há, no essencial, duas formas de ultrapassar esta nossa dependência de dívidas cada vez maiores. Uma é a forma decente e honrada de o fazer, que é reformarmos a nossa economia e os nossos hábitos de forma a torná-los sustentáveis. Isso implicará, naturalmente, alterar hábitos de consumo, adaptando-os às nossas possibilidades. A outra é a forma indecente e desonesta e passa por dizer aos nossos actuais credores que não pagamos e aos nossos futuros credores que queremos é subsídios. A tais exigências chamaremos "solidariedade" e embrulhá-las-emos em discursos sobre a "coesão social". Quem tiver dúvidas que leia o manifesto: está lá a retórica toda. 

Uma das coisas mais extraordinárias destes debates é o ar sério, até compungido, com que pessoas que nunca perderam um minuto da vida em acções de solidariedade se propõem "ser solidários" com o dinheiro dos outros. Sejam eles contribuintes portugueses ou contribuintes alemães (se forem alemães é melhor ainda). É sempre uma posição confortável e de elevada "autoridade moral". O pior é quando se tem de passar da simples e fácil indignação às propostas concretas.

Os subscritores do nosso manifesto ainda estão na primeira fase, a do simples protesto. A das proclamações tão gongóricas como vagas. Basta-lhes dizer que são pela "defesa da democracia, da soberania popular, da transparência e da integridade, contra a captura da política por interesses alheios aos da comunidade". Ou que dão "prioridade ao combate ao desemprego, à pobreza e à desigualdade". É fácil e é óptimo. Dir-se-ia até que estamos todos de acordo. Só que não estamos.

Propor a denúncia do memorando da troika tem consequências. Estar à altura da grandiloquência destas proclamações também. Pelo que se algum dia tiverem de passar das frases gerais às medidas concretas, as nossas almas sensíveis teriam, para serem coerentes, de propor algo semelhante à plataforma eleitoral do Syriza, cuja leitura é altamente recomendável porque altamente instrutiva. Sobretudo num país como Portugal, onde quase tudo o que ali se propõe já foi por nós testado - pelos governos de Vasco Gonçalves, em 1975. Com os resultados económicos conhecidos. 

A minha ideia de um país decente não é essa. Nem é a de um país a viver de subsídios. 

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