Quanto tempo Portugal vai estar assim?

Público 2012-04-28  José Pacheco Pereira
Este é um dilema do homem comum, não é um dilema para a classe dirigente, nem para a elite do poder

Quanto tempo Portugal vai estar assim? Não sei, mas suspeito que muito tempo, tempo de mais. "Assim" é como estamos agora, sem esperança, sem futuro, só com presente. Um presente longo, demasiado longo para alguns.

A pergunta é tudo menos técnica, é "social" no seu mais fundo sentido. Pode ser feita por um jovem de 20 anos ou por um homem ou mulher de 40 anos, e, embora a margem de manobra de cada um seja diferente, é a sua vida que depende da resposta, é a sua vida que, se ficar encalhada no presente, fica mal. A pergunta é humanista, num sentido que já não se usa, é uma pergunta que nasce da condição humana, e de pensar sobre disciplinas malditas dos dias de hoje como a História, ou a Literatura, ou a Política, ou a Filosofia.

Tudo coisas que passaram de moda, e que são, para a nossa elite, expendable, inúteis. É típico dos tempos fartos prescindir do pensar, e é por isso irónico que os defensores do primado da economia como "inevitabilidade" (uma típica ideia marxista), e que proclamam as virtudes das vacas magras, mantenham na sua cabeça um típico sinal dos tempos das vacas gordas: o de que não é preciso pensar porque a vida "real" tem a ver com os dilemas que acham simples do produzir e do gastar.

Esta e outras perguntas que é necessário fazer a partir da complexidade do humano, pensado em sociedades em que há a escolha cultural da democracia, remetem de imediato para dilemas éticos, que estão no cerne dessa escolha. Ora, muitos dos dilemas que defronta hoje a sociedade portuguesa são do domínio da ética, e raras vezes os vejo tratados como tais. E para os enunciar, mesmo antes de os tratar, não precisamos de nenhuma proclamação da verdade revelada, nem de nenhum moralismo. É apenas necessário vontade de verdade.

Quanto tempo Portugal vai estar assim? Começa porque este é um dilema do homem comum, não é um dilema para a classe dirigente, nem para a elite do poder, nem para quem tem suficiente folga para escapar com poucos estragos aos tempos de crise. A pergunta só é crucial para alguns, não é para todos e é por isso que o "quanto tempo" só é um problema para quem não vive bem, ou vive cada vez pior. E estamos no primeiro dos dilemas éticos que torna ridícula a comparação churchilliana que às vezes aparece nos discursos dos governantes, atraídos pela retórica do "sangue, suor e lágrimas", sem terem que derramar uma gota, nem fazer um esforço, nem chorar uma lágrima.

O que dá grandeza à tragédia da guerra que Churchill conduziu é que todas as personagens que estão no palco partilham o mesmo risco. Há uma "unidade de perigo", uma consistência no risco comum, a que ninguém escapa. É isto que faz nas guerras os grandes militares que comandam da frente, e dos dirigentes políticos que colocam a cabeça num cepo que não é apenas perder as próximas eleições. Não é o "protagonismo", nem a "liderança", nem o abastardamento da palavra "carisma", nem as palavras de um "politiquês" feito de carreiras políticas profissionais nos interstícios partidários e dos negócios. É a consciência da comunidade, algo de muito raro e muito difícil de conseguir, e que tem a condição sine qua non da partilha do risco. Ora, na actual crise, há demasiadas excepções e as excepções são sempre para os "mesmos" para se forjar um sentimento do "nós".

O resultado é um abismo psicológico cada vez maior que vai tornar Portugal numa sociedade ainda mais dual do que já era, duas partes que sentem diferente, agem diferente e vivem diferente. Numa sociedade já muito deslaçada e fragmentada, este abismo entre pessoas e grupos sociais vai coalescer os fragmentos, um para cada lado, mas não os vai aproximar. É caso dos "novos pobres", que se vão aproximar dos pobres, vão viver como eles, mas não são como eles.

Parte importante da chamada "classe média" está a soçobrar numa pobreza para a qual está longe de estar preparada e adaptada. Aliás, se há coisa para que não há "ajustamento", é a pobreza. Por isso me revolta considerar-se que o empobrecimento é apenas uma "mudança de hábitos", como se subitamente as pessoas escolhessem comer frango em vez de outra carne porque acreditam nas virtudes de poupar, ou como forma de punição por antes "viverem acima das suas posses". Não, as pessoas que passaram a comprar frango de aviário não estão a "adaptar-se", estão pura e simplesmente a escolher não o que desejam, mas o que podem comprar. Um dos dilemas morais dos nossos dias está na obrigação de recusar uma linguagem que impregna os actos de muita gente de culpa e submissão, redimida pela pobreza, como se houvesse qualquer valor moral na pura necessidade.

"Os portugueses têm que aceitar viver de outra maneira". Claro que têm, mas esta frase só pode ser dita se considerarmos que o fazem por necessidade e não por escolha, e que nem todos o fazem. Não há "unidade do perigo", insisto, não é para todos. Esta absurda ideia, talvez aquela que mais legitima a linguagem do poder e a que mais interioriza a culpa - daí a sua eficácia - é a de que um festim colectivo de abundância, de crédito fácil, de dinheiro distribuído a rodos, de benesses várias do Estado, é o principal culpado da actual situação. E o culpado é o homem comum, são aqueles que o "ajustamento" mais ataca para os remeter à sua original condição de pobres, de que nunca deveriam ter saído.

Se é daqui que temos que partir, então vamos encontrar muitos outros "culpados" antes de chegar à família que comprou os sofás, ou que foi de férias, com crédito de consumo, ou comprou casa com dinheiro emprestado da banca. Temos que ir aos bancos que concederam esse crédito porque isso lhes trazia lucro, aos políticos que fizeram toda uma política assente nesta falsa prosperidade, e aos economistas que, então como agora, justificam o presente pela sua inevitabilidade.

Quando ouço falar do "festim do crédito", quem é que é responsável pelo "festim"? Quem deu a festa para recolher lucros, ou participou nela para ter vida mais fácil? A resposta justa é: pelo menos os dois. A injustiça da resposta é que só um aparece como "culpado" do "festim", e só um lhe paga os custos. E se falarmos mesmo dos muitos milhares de milhões que constituem a dívida nacional, que hoje é apontada como um fardo moral para os pobres que "viveram acima das suas posses", com esse plural majestático do "nós", em "nós vivemos acima das nossas posses", eles não foram certamente para o bolso das pessoas comuns que hoje lhes pagam o custo. Não foram os pobres, nem os funcionários públicos, nem a classe média baixa que fez as PPP. O discurso do poder é todo feito para culpabilizar os de baixo, enquanto quase pede desculpa para moderar um pouco os de cima. A resposta dos de baixo é uma rasoira populista e igualitária, que também não promete nada de bom para o futuro.

Há uns imbecis que dizem que falar assim é falar como o Bloco de Esquerda. Não, falar assim é falar como deveriam falar todos aqueles que não vêem a realidade com os olhos do poder e das ideias da moda, e que se esforçam por perceber o sentido último da política em democracia: as pessoas só têm uma vida, e, estragada essa vida, não há outra. É laica a política em democracia, vive da vida terrestre não da vida celeste. E se isso não é a pulsão da política em democracia, o bem comum e concreto das pessoas, então a democracia não sobrevive. Não tenho feitio para Catão, e tudo o que aqui é dito é mais que moderado e devia ser, se não andássemos todos virados para as explicações simplistas e para os slogans dicotómicos dos blogues, sensato. Aliás, a grande traição do PSD, do PS e do CDS é terem deitado fora, ofuscados pelo poder, todas as raízes humanistas, sociais, liberais, e cristãs, do seu pensamento e, pior ainda, do seu "sentimento".

É por isso que anda um Portugal lá fora desiludido, revoltado, deprimido, sem esperança, nem sentido, que, ou cai na mais completa anomia e submissão, ou esbraceja sem sentido contra tudo e contra todos. E a grande tragédia da política democrática é que essas pessoas estão sós, não contam com ninguém a não ser com os restos que ainda subsistem de genuína solidariedade social, e do que sobra da família, estilhaçada pela engenharia "fracturante" das últimas décadas. A elite dirigente, política e económica, sabe pouco desse sentimento de solidão, e, pior ainda, sabe cada vez menos, porque os modos de vida se separam todos os dias, entre o conforto do poder e a devastação da pobreza. O rasgão que isto está a fazer num Portugal já muito puído será muito difícil de remendar.

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