Liberdade e sentido de dever

Público 20120416  João Carlos Espada
Talvez o Titanic nos possa recordar uma época em que a liberdade era indissociável da responsabilidade pessoal

No centenário do jantar final no Titanic, a 14 de Abril de 1912, o hotel Spa do Vinho em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, Brasil, reproduziu no sábado passado uma versão abreviada do menu do navio: salmão poché com molho musselina e pepinos, pato assado com molho de maçã, cordeiro ao molho de hortelã e batatas à parmentier, waldorf pudding e éclairs de chocolate.

Esta foi a ementa do jantar no passado sábado, no encerramento de uma conferência promovida pela fundação norte-americana Liberty Fund sobre o tema A Ideia de Lei. Durante três dias, discutimos em residência no hotel Spa do Vinho a história do conceito de Rule of Law na civilização ocidental.

Recordámos a centralidade da ideia na civilização grega, e como ela estava no centro da distinção entre a Grécia livre e os bárbaros submetidos ao despotismo da vontade arbitrária dos seus governantes. Observámos como a ideia de governo pela lei e não pelo capricho da vontade foi crucial para a civilização romana. E recordámos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino colocaram a ideia de lei no centro da doutrina cristã sobre a cidade dos homens, fundada na ideia de lei natural.

Em seguida, percorremos a evolução moderna daqueles conceitos, em Hobbes, Locke, Kant e Bentham. Vimos em seguida o assalto gradual a que a ideia de lei ficou submetida pelo marxismo, o positivismo e o nacional-socialismo, bem como o pós-modernismo.

Os participantes convergiram na defesa do Estado de Direito, ou Rule of Law, como fundamental defesa contra a tirania de um, alguns ou todos reunidos em colectivo. Mas havia grande hesitação sobre como fundamentar o Estado de Direito. As modernas superstições relativistas inibiam os participantes de tentar sustentar o Estado de Direito numa doutrina substantiva acerca do bem e da liberdade. Vários oradores tentavam por todos os meios encontrar uma justificação não moralista, como se diz hoje, para a liberdade.

Foi então muito a propósito que fomos surpreendidos pelo menu do Titanic que o hotel promoveu para o jantar de sábado passado - e que coincidiu com o nosso jantar de encerramento da conferência. Porque isso nos permitiu recordar que o comportamento dos passageiros do Titanic era ainda devedor de uma civilização da liberdade fundada em deveres morais. Essa civilização liberal, justamente também chamada de vitoriana, era sobretudo de geração britânica. Ela acreditava no comércio livre, na propriedade privada e no Estado de Direito, ou Rule of Law. Via a liberdade como inseparável do sentido de responsabilidade pessoal, expressa no código de conduta da gentlemanship.

Este código exprimia, por sua vez, uma versão latitudinária da moral cristã, com ênfase particular nos deveres de cada um para com o seu semelhante. Estes deveres não resultavam de ordens de comando do Estado ou da esfera política, mas impunham severos limites à esfera de acção estatal ou política. Uma sociedade livre de gentlemen não aceitava ser comandada pela vontade arbitrária dos governantes. Estes estavam submetidos à mesma lei moral e deviam respeitar a liberdade dos gentlemen com escrúpulo exigente.

Tudo isso, pode agora ser dito, pertence a uma época passada. Hoje os governos capturam metade do rendimento produzido pela empresa livre e impõem legislação sobre os mais ínfimos detalhes da vida civil, incluindo a proibição de fumar em clubes de membros. Sofisticadas teorias modernas questionam o conceito de dever moral e explicam não existir diferença objectiva entre o bem e o mal. E as pessoas não se dão conta de como o crescimento do Estado central ocorreu em paralelo como o declínio dos padrões de comportamento e com o crescimento do relativismo moral.

Mas talvez o jantar do centenário do Titanic nos possa recordar uma época em que a liberdade era indissociável da responsabilidade pessoal - uma época cujo epílogo permitiu a ascensão do Estado total, comunista e nacional-socialista. Ao recordarmos o sentido de dever dessa época, talvez possamos imaginar como o sentido de dever está indissociavelmente ligado ao sentido de liberdade e ao ideal de governo das leis, por oposição ao governo pelo capricho dos homens.

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