Este país gasta muito dinheiro mal gasto

Público, 2012-01-29
Luís Francisco
São dois Ruis e uma Bárbara, todos na casa dos 30 anos e a viver em Lisboa. Recusam a lógica do não se meter e dizer mal "deles" nas conversas de café. Criaram um blogue para denunciar os gastos despropositados da administração pública. Estão cheios de trabalho.

Estes três juntos podiam constituir um daqueles painéis de comentadores políticos em que as nossas televisões e a blogosfera são férteis. Dois homens e uma mulher, três áreas diferentes de especialização, mas complementares para analisar a temática que se propuseram abordar. Segundo as suas próprias palavras, cada um votou num partido diferente nas últimas eleições. Mas Bárbara Rosa, Rui Abreu e Rui Oliveira Marques não são um painel. Aliás, eles abominam tal coisa. O que eles fazem não é opinar. Eles investigam e denunciam. Há nove meses, criaram um blogue para expor casos de gastos desnecessários ou escandalosos na administração pública.

Chamaram-lhe Má Despesa Pública. Porque "tinha de ser": "O nome é óbvio. Ainda pensámos noutros, mais bonitos, mais artísticos, apelativos. Mas este é que é o nome certo!" Bárbara, jurista, 32 anos; Rui Abreu, 34 anos, arquitecto; Rui Marques, 32 anos, jornalista. Ela é de Viseu, eles de Lisboa (o primeiro) e de Braga (o segundo). Todos vivem e trabalham na capital, embora dois deles em regime free-lance.

Decidiram aplicar o seu tempo a praticar o "dever cívico" de escrutinar as despesas dos organismos públicos. Vasculham o portal onde são publicados os contratos por ajuste directo e descobrem "pérolas" como os 1,25 milhões de euros pagos pela Câmara Municipal de Oeiras por uma escultura de Pedro Cabrita Reis ou os cinco mil euros pagos pelo presidente do Inatel, Vítor Ramalho, para ser entrevistado pela revista País Positivo, que por acaso até é distribuída como encarte publicitário pelo PÚBLICO.

Como é que surgiu esta ideia? Rui Marques é o primeiro a explicar: "Já nem nos lembrávamos... Estivemos a falar nisso antes da entrevista. Teve que ver com uma notícia sobre a renovação da frota da Carris, há menos de um ano. Percebemos que faltava um projecto on-lineque congregasse tudo o que se vai escrevendo na imprensa, mas que fica esquecido logo dois dias depois. E rapidamente descobrimos que havia muitos exemplos que não vinham na imprensa e que nós podíamos dar a conhecer."

Isso foi, portanto, há menos de um ano... "O blogue foi criado a 1 de Abril, o Dia das Mentiras. E muitas das coisas que lá vêm parecem mentira...", especifica Bárbara. Rui Abreu puxa a conversa para um tom mais sério: "A ideia fundamental é que isto, ao contrário do que sempre se ouve nas conversas de café, não é "nós" e "eles". "Eles" são quem gasta o nosso dinheiro!"

O "governante gastador"
Não será difícil aos menos desatentos formar a convicção de que os nossos titulares de cargos públicos têm demonstrado uma notável capacidade para gastar o dinheiro que não lhes pertence de forma que muitas vezes roça a completa irresponsabilidade. Mas o que hoje se diz amanhã já foi esquecido, na voragem incessante da informação. E os portugueses gostam muito de comentar, mas envolver-se... dá trabalho. Fora dos aparelhos partidários há um claro défice de cidadania.

Foi assim que estes três jovens urbanos olharam para a situação. E não se resignaram. Decidiram agir. "É o nosso dever cívico", diz Bárbara. "Participar na vida do Estado é um dever. A cidadania não é só ir votar de quatro em quatro anos, ou de dois em dois!" Para eles, tornou-se óbvio que era preciso fazer mais. "O que é estranho é não haver mais gente a fazer isto. Os partidos, os media... gasta-se muito tempo e espaço, e caracteres, no bate-boca da Assembleia da República, por exemplo, e faz-se pouca investigação", acusa Rui Marques.

O outro Rui gosta de abordar as coisas num tom mais global. É ele quem avança a seguir com a ideia de que, em Portugal, o que temos é "o governante gastador, em vez do governante gestor". E isso explica que "ninguém calcule quanto vai custar a manutenção da infra-estrutura que se mandou construir, ou faça planos sobre a sua futura utilização". É como se a inauguração fosse "o último acto e não o primeiro". Como eles andam sempre com as mãos nesta massa, Rui avança logo com um exemplo: "A Parque Escolar, por exemplo. As novas escolas têm ar condicionado, mas os aparelhos estão desligados e as salas de portas abertas. Porquê? Porque o ar condicionado ligado faz disparar as contas da electricidade e as escolas não têm dinheiro para sustentar essa despesa..."

O retrato do país que obtemos no blogue fica, muitas vezes, perigosamente perto do surreal. Por estes dias, os três vigilantes do Má Despesa Públicaviraram-se para o Banco de Portugal. E revelaram, por exemplo, que o nosso banco central decidiu gastar 245 mil euros em serviços de consultoria financeira durante dois meses e há outros 190 mil destinados a consultoria em matéria de gestão geral. "Algo de errado se passa na capacidade da equipa do banco", concluem.

Denúncias que dão notícia
Esta ironia, garante Bárbara, é muitas vezes a única maneira de lidar com assuntos dolorosos, quanto mais não seja para a nossa carteira. "É rir para não chorar..." Mas eles não querem opinar. Para isso já há para aí muita gente. "Damos a notícia. Divulgamos informação que é pública, mas com uma triagem. Tentamos ser o mais crus possível, só dar atenção aos factos. Acho mesmo que a parte mais dura do trabalho é tentar guardar para nós as nossas opiniões sobre despesas que falam por si."

Uma forma de encontrarem esse equilíbrio é filtrarem o trabalho em conjunto. "Toda a gente "pesca" [vasculha os contratos], mas só se publica depois de debatermos e chegarmos a um consenso", explica Rui Abreu. Embora sem entrar em detalhes, ele é o único que assume já ter sido prejudicado devido à forma como toma posições públicas de denúncia. Mais do que recusarem o medo de poderem vir a pagar pela sua irreverência, o que os caracteriza é mesmo a sensação de que não pensam, sequer, nisso.

"O senhor de Santa Comba já morreu há muito tempo", ironiza Bárbara. E, embora tenha deixado "muita herança", diz Rui Abreu, nenhum deles concebe que, "em democracia", falar abertamente sobre o que o poder anda a fazer com o nosso dinheiro possa ser uma actividade com riscos envolvidos. Para mais, esta é a primeira vez que dão a cara. Os textos do blogue não são assinados, não porque algum deles tivesse receio de assumir o que escreve, mas porque a intenção era não assumir protagonismo. "Nunca foi essa a ideia", assegura Rui Marques.

Seja como for, a sua actividade começou a dar nas vistas. O blogue tem cerca de 130 mil visualizações e há 1300 seguidores no Facebook. Alguns deles serão jornalistas... "O impacto do que escrevemos só pode ser maior se houver notícias dos casos que relatamos", assumem. E já houve. Algumas até sem citarem a fonte, o que os deixa aborrecidos.

Mas eles sabem que estão a ser ouvidos. Quando denunciaram os planos de construção de um parque de estacionamento subterrâneo em Baião, receberam esclarecimentos, "de grande nível", da autarquia e do gabinete de arquitectos envolvido. Uma leitora do blogue escreveu ao presidente da Câmara de Cascais sobre a intenção da autarquia de gastar 120 mil euros em estudos para aquilatar da opinião dos munícipes sobre o desempenho dos autarcas e foi-lhe comunicado que o projecto fora cancelado...

O regabofe de 2009
Serão excepções. Tal como a generalidade dos portugueses, os poderes públicos não gostam de ser questionados. Azar deles. "Nós queremos promover o debate. E, curiosamente, quanto mais pequeno é o lugar ou instituição que denunciamos mais facilmente obtemos reacções", explica Rui Abreu. "Acreditamos que as pessoas podem reagir e pressionar os poderes", completa Bárbara.

De fora do seu raio de acção ainda fica muita coisa. As regalias dos titulares de cargos e postos de topo, por exemplo. "É muita burocracia para obter respostas. Não está à distância de um clique e isso impede-nos de ir mais longe", explica Bárbara. Pior ainda é o caso das fundações, que não estão obrigadas por lei a publicar os seus contratos.

Mas eles porfiam. E vão revelando contas estranhas da Madeira (dois meses depois descobriu-se o buraco orçamental), a estranha paixão dos organismos públicos por agendas e calendários, a dimensão das despesas da Presidência da República, as empresas pagas para prestarem serviços que não aparecem feitos, as extravagâncias de alguns autarcas, as irresponsabilidades de outros, a aparente inimputabilidade de quase todos.

Fazem-no sem qualquer bandeira que não "a cidadania", ao contrário de outros grupos - contra as portagens, os recibos verdes, as propinas -, que têm uma causa, uma agenda própria. Numa altura em que as pessoas se mostram receptivas a denúncias, eles admitem que os melhores casos de gastos estapafúrdios podem estar no passado (2009, ano de duas eleições, foi fértil), uma vez que a austeridade limita a capacidade de gastar mal.

Mas eles encontram sempre alguma coisa. E pegam, irritando muita gente e incomodando ainda mais. Rui Marques recorda uma: "O presidente do Inatel chegou a dizer que a nossa denúncia tinha por trás interesses de privatização ao serviço de determinado grupo económico... Parece uma coisa de Hollywood: procura-se uma grande conspiração e afinal são só três tipos que não vêem novelas."

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