Então vamos lá escrever mais um texto "histórico"...

Público 20110304 José Manuel Fernandes
Seis evidências sobre o bloqueio político que Sócrates criou e que a oposição parece ter medo de romper

Vivemos dias históricos. No mundo árabe? Talvez. Mas também aqui mesmo. Em Portugal. Nesta terra onde há quem julgue que tudo aquilo em que toca pode não ficar a luzir, como oiro, mas torna-se imediatamente "histórico".
Não acreditam? Então recapitulemos alguns dos mais recentes feitos "históricos". O último foi o resultado (provisório) da evolução das despesas públicas em Fevereiro. Apesar de a evolução se explicar em boa parte por a despesa com os juros da dívida terem descido (quando se sabe que vão subir, e muito, ao longo do ano), proclamou-se que a evolução das contas do Estado era "histórica". E até com direito a foguetório em Berlim.
Antes tinha havido uma "cimeira histórica" da NATO. Um aprofundamento "histórico" das relações Portugal-Espanha por ocasião da inauguração de um laboratório. A ligação entre as barragens de Alqueva e do Roxo proporcionou também um "dia histórico" para o Alentejo. Tal como fora "histórico" o acordo para a instalação de duas fábricas da Embraer em Portugal. Ou o lançamento de mais uns lanços de auto-estrada em Leiria. A construção de uma ponte sobre o Tejo no Carregado foi considerada "uma obra mais histórica" do que a inauguração de 11 quilómetros de auto-estrada na mesma região. O banal Sharan, da Volkswagen, também já foi considerado "um carro histórico" por ser construído na Autoeuropa. Ainda há um ano o esquecido Contrato de Confiança para o Ensino Superior era tido por um "acordo histórico". Tal como a parceria especial entre a União Europeia e Cabo Verde. Ou o acordo sobre Cahora Bassa. A lei do casamento homossexual teve o mesmo estatuto de "histórica" que a ficção de uma parceria de empresas de telecomunicações para instalar redes de fibra óptica que terá ficado a 20 por cento dos objectivos. Podíamos prosseguir, mas não vale a pena. Vivemos mesmo tempos históricos, porventura heróicos.
Na verdade, já nos habituámos. De tal forma que, apesar de alguns máximos realmente históricos - como o défice de 9,3 por cento em 2009, a taxa de desemprego nos 11,2 por cento, o pico das taxas de juro ou o preço recorde da gasolina - não serem muito entusiasmantes, o facto de José Sócrates ter banalizado de tal forma a "História" levou-me a decidir, também eu, escrever um texto histórico. Porquê? Porque... sim. Ou mesmo por nada de especial, pois limitar-me-ei a sublinhar algumas evidências.
A primeira evidência é que o país está num compasso de espera. Todos sabem que o pesadelo destes anos Sócrates está a chegar ao fim, mas ninguém sabe quando chegará esse fim. O que faz com que tudo fique em suspenso. O Governo deixou verdadeiramente de governar, saltitando entre medidas "para Merkel ver", anúncios desconexos (como os do ministro das Obras Públicas esta semana no Parlamento) e poupanças de curto prazo que muitas vezes têm efeitos negativos a médio e longo prazo. Sócrates apenas quer evitar ter de pedir formalmente ajuda (informalmente a ajuda já chegou, basta pensar que o BCE ficou em 2010 com quase 20 mil milhões de títulos da dívida pública portuguesa) para adiar ao máximo a convocação de eleições antecipadas.
A segunda evidência é que este clima de adiamento gera uma inelutável degradação da situação do país. A actual maioria já não tem uma gota de autoridade ou credibilidade, pelo que é absolutamente incapaz, apesar de tantos "momentos históricos" e de repetidas profissões de fé num optimismo bacoco, de criar um clima de confiança ou de mobilização. Na melhor das hipóteses espera-se o fim do pesadelo, na pior começa-se a descrer da própria democracia. Não mata, mas mói.
A terceira evidência é que a falta de rumo acentuou a clivagem entre a efabulação da propaganda e a dureza da realidade. Medidas como as que estão a ser tomadas no mercado do emprego, das relativas aos despedimentos às destinadas aos jovens estagiários, parecem uma coisa, mas são outra. Ou seja, por regra fazem com que o mercado fique ainda mais rígido e tornam mais difícil, porque mais caro, criar novos empregos. É o tipo de ficção criada para ver se se consegue enganar "os mercados", só que estes não se comovem. Viu-se ontem, de novo, como já nem a boa vontade de Merkel os amacia.
A quarta evidência é que Portugal aplicará as medidas de austeridade que lhe disserem para aplicar com ou sem pedido de ajuda externa. Já o está a fazer, mesmo que nem sempre da melhor forma, mesmo que atabalhoadamente. Com um problema adicional: tivesse vindo a ajuda e pagaríamos menos juros. O propalado orgulho dos "oito séculos de história" tem um preço, e um peso: vai custar-nos muito mais a pagar no futuro o dinheiro que estamos a pedir emprestado hoje.
A quinta evidência é que, apesar de muitos dizerem que a situação do país exige uma coligação ampla e acordos que envolvam o centro-esquerda e o centro-direita, a verdade é que nunca ninguém apertará a mão a Sócrates com medo da picada do escorpião. O primeiro-ministro seguiu uma política de terra queimada que, hoje por hoje, exclui o PS de qualquer acordo mais abrangente e condena-nos a todos a ter de esperar pela sua remoção. E pela ressurreição do PS.
A sexta evidência é que o PSD ainda não parece ter percebido que não lhe basta esperar que o Governo e o PS caiam de podres, tem também de conseguir mostrar como poderia fazer diferente e, sobretudo, de mostrar como fazendo diferente poderia devolver alguma esperança aos portugueses. Passos Coelho tem estado bem ao não mostrar pressa em chegar ao poder, mas tem estado mal ao não conseguir ainda mostrar o que faria com esse poder. E com quem (equipa, eventuais coligações) exerceria esse poder.
Deixemos porém o que é mais ou menos óbvio e passemos ao que é difícil: tentar perceber o que pode ser feito de forma diferente, estruturada, com uma visão sobre o futuro do país. A mobilização da chamada "geração Deolinda" fornece-nos uma boa oportunidade para o fazermos.
Há duas formas de olhar para os dilemas dos jovens retratados na canção. Uma é aquela de que já se apoderou o Bloco de Esquerda e se resume de uma forma muito simples: o problema dessa geração é a precariedade e o que devemos oferecer-lhe são os mesmos direitos e salários dos mais velhos. É a visão fácil e impraticável, pois o país está como está devido aos maus hábitos facilitados pelo regime dos "direitos adquiridos". Não é o que está na canção - que é apenas um retrato de uma situação - e nem sequer corresponde ao que realmente deseja essa geração, que há muito percebeu que o tempo dos "empregos para a vida" (os únicos que não são precários) já lá vai.
A outra forma é dizer que o esforço de reforma tem de ser repartido por todas as gerações - e repartido globalmente, não apenas na casa de cada família onde os mais velhos vão aguentando os mais novos, o que não é saudável. Isso significa, por exemplo, que não se deve alterar a legislação laboral apenas para os novos contratos, como está em discussão, mas para todos os contratos. Isso significa que não se pode continuar a proteger as rendas antigas, atirando com os jovens para os subúrbios. Isso também significa, como ontem aqui lembrava Helena Matos, que é necessário acabar com "a traição [geracional] dos mais velhos, ou conspiração grisalha", como a cunhou Fernando Ribeiro Mendes, ex-secretário de Estado da Segurança Social no primeiro Governo de António Guterres, num estudo que fez sobre a Segurança Social.
Por outras palavras: isso implica, como aqui escrevi há um mês, incentivar o gosto das novas gerações por mudar, por testar e por arriscar, fazendo Portugal passar não por um processo de marcha-atrás, como o defendido pelo Bloco de Esquerda, mas por processo de reinvenção, deixando de ser "uma sociedade fechada e espartilhada por interesses e capelinhas". Ora, o que me espanta é assistir ora à desistência cobarde perante o discurso bloquista, ora à reacção assustada e, perdoem-me o termo, "velha", de pessoas tão diferentes como Mário Soares e Pacheco Pereira.
Os mais novos estão zangados e têm razão para estar zangados. Os verdadeiros líderes políticos não lhes deviam vender ilusões, antes mostrar um outro caminho e acender uma nova esperança. Será que não percebem? Jornalista

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