Dona Augusta e Tocqueville

Henrique Raposo
Expresso, 2011-02-12

A crónica de hoje é simples e não tem qualquer voluptuosidade formal. Aliás, hoje só tenho duas coisas para dar: Augusta Martinho e Tocqueville. Porque a senhora-que-mumificou-num-apartamento-esquecido-da-Rinchoa acaba por ser uma dolorosa lembrança de uma lição de Tocqueville, a saber: o Estado moderno tem um demónio na cave, e este bichinho deveras burocrático tem a capacidade para arrasar os "corpos intermédios" da sociedade.
Através da mecânica da lei e da burocracia, o Estado tem o poder de enfraquecer a vida orgânica da sociedade, isto é, as paróquias, os clubes associativos, os colégios, as universidades, as empresas.
No fundo, o Estado tem o poder para desumanizar uma sociedade até ao ponto de destruir a vida de bairro e os laços de vizinhança e de civilidade, essas argamassas pré-políticas de um país. Porquê?
Porque este Leviatã moderninho força o indivíduo a centrar-se nas suas ligações burocráticas e políticas, em detrimento das ligações pré-políticas. Por exemplo, a Dona Laurinda, a balzaquiana aqui do prédio, sabe de cor o seu NIF e o seu BI, mas não sabe o meu nome. Para ela, eu sou apenas 'o bonitão do 4º andar'.
Como é fácil de perceber, a nossa III República é este Estado dos pesadelos de Tocqueville (e deste vosso petit Tocqueville).
Em Portugal, tudo tem de ser político, isto é, estatal.
A educação tem de ser estatal, a saúde tem de ser estatal, a segurança social tem de ser estatal, o apoio social tem de ser estatal.
Neste quatro ultrapolítico, o indivíduo não é um cidadão, mas um súbdito. Sim, súbdito. Onde é que está a liberdade na educação e na saúde?
Onde é que está a liberdade na segurança social? Ou será que só temos liberdade para votar de quatro em quatro anos?
Ora, além de ser eticamente reprovável, esta infantilização do indivíduo revelou-se ineficiente. Ou seja, além de ter uma moral duvidosa, o Leviatã tuga é incompetente.
E aqui voltamos a Augusta Martinho. Aquela senhora esteve esquecida durante nove anos, porque um tribunal ignorou treze (13) pedidos de um primo: "Senhora juíza, deixe-me arrombar a porta, por favor".
Sim, eu sei que o meu bravo leitor arrombaria a porta sem autorização, qual Rambo da subúrbia.
Mas o ponto não é esse, meu caro.
O Estado tratou aquele senhor como se ele fosse uma criança ("ah, então não cheira mal"), porque é esse o seu ADN antitocquevilliano: desprezar os "corpos intermédios" (neste caso, a família) e tratar as pessoas como números.
Tocqueville avisou.

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