Não ser cristão no Natal, os minaretes e a placa de Auschwitz

Público, 20091226, José Manuel Fernandes

Quando uma cultura maleável e relativista choca com outra firme nas suas doutrinas, por regra é a primeira que cede


Sajda Khan é uma britânica de fé muçulmana. Escrevia esta semana no Times Online: "Quando era criança, nunca percebi realmente o que era o Natal, apenas sabia que se celebrava o nascimento de Jesus." Só muito mais tarde aprendeu que Jesus também era um dos Messias citados no Corão - citado, mais exactamente, 25 vezes. Foi nessa altura que também percebeu que o cristianismo e o islamismo "partilham as mesmas raízes teológicas".

Mesmo assim Sajda Khan não festeja o Natal. Nunca festejou, recordando até que, quando estagiou num hospital, se oferecia para trabalhar nestes dias para os seus colegas poderem tirar folga. Ora esta opção - insignificante, diríamos - diz muito. Porque Sajda podia fazer como tantos outros nas sociedades descristianizadas do Ocidente: adoptar o Natal como uma festa familiar e, sem lhe associar qualquer prática religiosa, juntar-se aos seus, melhorar a ceia e trocar presentes. Só que, apesar de o seu texto ser todo ele sobre os pontos de convergência entre o islamismo e o cristianismo, e de até criticar a pouca atenção que a imprensa dá, por estes dias, à mensagem de "nobreza, generosidade, compaixão e justiça" de Jesus, Sajda é muçulmana. Ponto.

Ao ler o seu testemunho é possível perceber melhor um problema com que a Europa vive e não quer entender: o da integração das suas comunidades muçulmanas. Comunidades que, ao contrário do que asnaticamente se escreveu aquando do "não" suíço à construção de minaretes, não podem ser comparadas com as comunidades judaicas que durante séculos sem conta constituíram a principal minoria religiosa da Europa. Não por estes comemorarem o Natal - os judeus têm outra festa em Dezembro, o Hanukkah, onde recordam a vitória dos Macabeus e a reconquista do Templo de Jerusalém - mas por os judeus, apesar de todas as perseguições, serem parte da cultura europeia e, talvez com excepção do mundo rural iídiche da Polónia e da Ucrânia, se terem integrado por completo no tecido social.

A situação das minorias muçulmanas é diferente, por motivos que derivam quer das características das modernas sociedades europeias, quer da forma como muitos muçulmanos as olham. E os problemas começam por não querermos reconhecer sequer a existência de problemas, como sublinhou Christopher Caldwel, autor de Reflections on the Revolution in Europe, em entrevista à Spiegel. A diferença entre as sondagens e o resultado do referendo na Suíça provam que "há uma discussão oficial sobre o islão e uma discussão subterrânea". A discussão "oficial" é a politicamente correcta; a "subterrânea" é a que preferimos desconhecer. Ora isto é preocupante.

O que é necessário compreender é que, nos seus diferentes modelos, uns mais inclusivos, outros multiculturalistas, nenhum país europeu está a conseguir integrar os muçulmanos no sentido de estes se sentirem europeus como, por exemplo, os muçulmanos americanos se sentem, na sua esmagadora maioria, americanos. Mais: os europeus esperam que os imigrantes muçulmanos absorvam, gradualmente, os valores europeus, ao mesmo tempo que a Europa se procura acomodar às suas necessidades. Só que é muito diferente permitir a construção de mesquitas (com ou sem minaretes) e, como já aconteceu em Lille, um tribunal aceitar dissolver um casamento por a noiva não estar virgem.

Caldwel defende no livro, e reafirma na entrevista à Spiegel, que o mal-estar europeu não pode deixar de estar relacionado com muitos sentirem que são os muçulmanos quem começa a ditar certas regras: "A Europa vive hoje um ambiente cultural inseguro, maleável, relativista, um ambiente cultural que, quando entra em choque com uma cultura cheia de confiança, ancorada e fortalecida por doutrinas comuns, facilmente se modifica para a acomodar." Mas deixando cicatrizes. Os "laicos", sentindo-se herdeiros de uma cultura iluminada, desprezam o islão religioso a que estão a ceder espaço. Os que se mantêm fiéis às suas identidades religiosas receiam as consequências do que vêem como uma "invasão".

O potencial de conflito agrava-se por vivermos tempos em que a circulação da informação é global e, facilmente, um conjunto de cartoons publicado num pequeno jornal dinamarquês provoca cenas de violência religiosa no outro lado do planeta. Ora a percepção desta porosidade das fronteiras, o receio de "ofender" o Outro e algum complexo de culpa dos países mais ricos têm levado a cedências inesperadas, algumas das quais põem em causa a natureza das nossas sociedades. Exemplo disso foi a aprovação, a 18 de Dezembro, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, de uma resolução que, na linha já assumida do direito à "não difamação das religiões", estabelece princípios que podem, com facilidade, ser interpretados como limites à liberdade de criticar o extremismo religioso.

Sabemos que não é necessário ser extremista para incorrer no preconceito. E como do preconceito é muito fácil saltar para a exclusão, e da exclusão para a perseguição. Timothy Garton Ash chamou precisamente a atenção para este encadeamento no seu texto de quinta-feira no The Guardian. A propósito do roubo da infame placa que marcava a entrada do campo de extermínio de Auschwitz, lembrava que ainda por estes dias ouvira nas televisões alemãs noticiar que o nazi John Demjanjuk que está a ser julgado actuara no "campo de extermínio polaco de Sobibor". Polaco? É verdade que esse campo foi construído no território da Polónia, mas como é possível que, hoje por hoje, os principais canais de televisão germânicos se lhe refiram não como um campo nazi, mas como um campo "polaco"?

Porque, explicava Garton Ash, o preconceito sobrevive: a Polónia continua a ser associada a catolicismo e a anti-semitismo, quase a Holocausto. No entanto, na Polónia houve de tudo, como em qualquer comunidade humana há de tudo. O historiador recorda o caso de Jedwabne, uma aldeia onde os polacos se anteciparam aos nazis e massacraram todos os judeus. Mas não longe de Jedwabne, noutras aldeias, outros polacos ou seguiram com indiferença o destino dos judeus, ou arriscaram a vida para protegê-los. E ninguém sabe explicar por que é que uma comunidade se tornou genocida e, a poucos quilómetros, outra se comportou heroicamente.

Como ninguém sabe, no limite, o que é e não é capaz de fazer. Timothy Garton Ash recomenda uma peça em cena em Londres, Our Class, onde, a partir da história de Jedwabne, se percorrem as contradições da natureza humana. E lembra, a finalizar "que não existem apenas alguns povos que são vilões e outros que são heróis: a verdade é que o mesmo homem ou mulher pode comportar-se terrivelmente num dado momento, magnificamente no momento seguinte". Ou seja - e que apropriada é esta reflexão por estes dias: "Somos fracos e somos fortes; carregamos o peso da culpa e temos direito a pedir clemência; e por fim crescemos, adoecemos e morremos."

Jornalista

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