Os católicos e a política


A Capital, 2005-01-09
1. Os alicerces para compreender os fins e os meios de intervenção dos católicos na vida política foram definidos no Concílio Vaticano II e têm vindo a ser objecto de permanente escrutínio por parte das autoridades eclesiásticas e por parte dos fiéis em todo o Mundo.
Um dos principais textos conciliares – a Constituição Pastoral Gaudium et Spes, de 1965 – conjuntamente com as Declarações e Decretos então aprovados definiu princípios fundamentais acerca da organização da sociedade e do Estado.
A doutrina social da Igreja encontrou nestes textos a sua âncora e base, e tem sido em torno de alguns dos eixos conceptuais então definidos que o Papado e os Bispos das Igrejas nacionais têm vindo a construiu um edifício teórico de orientação, quer das relações entre o Estado e a Igreja quer da participação dos católicos na vida da sociedade, na acção política e no interior da própria Igreja.
A dignidade humana
2. Em primeiro lugar, afirmou-se a dignidade humana. A proclamação da dignidade do homem não é uma mera questão teórica, mas o reconhecimento do homem concreto, com toda a radicalidade da sua imperfeição. A dignidade do homem não constituiu apenas uma proclamação sem efeitos práticos: é importante não perder de vista que a doutrina social da Igreja assumiu os direitos fundamentais como alicerces da sociedade e do Estado contemporâneo, definindo de modo muito claro uma ligação entre a dignidade e direitos em concreto.
Para quem conhece a filosofia política do jusnaturalismo cristão, reconhece neste atitude uma orientação moral renovada. Efectivamente, a matriz do Direito Natural do cristianismo tendia a sublinhar uma ética de deveres, nos quais se distinguiam os deveres naturais do homem enquanto cristão – os deveres para com Deus –, enquanto homem social – os deveres para com o semelhante – e enquanto pessoa – os deveres perante consigo próprio. A autonomia dos direitos constitui o reconhecimento de uma nova ética, com os seus corolários jurídicos, nomeadamente presentes na Declaração Universal dos Direitos do Homem e nas Constituições do pós-guerra.
Isto não fez perder de vista a existência de comunidades naturais, como a família, e de deveres naturais, assentes nas virtudes cristãs, como o amor ao próximo. Compreende-se, nesta linha de pensamento, como diversas correntes cristãs, preocupadas com a crescente cultura de direitos se têm empenhado em construir declarações de deveres, que recordem ao homem que um mundo constituído apenas por direitos não é realizável e conduzirá o homem à negação da sua liberdade autêntica.
Os direitos naturais
3. Estes direitos naturais do homem são portanto inerentes à sua dignidade e à promoção das qualidades do próprio homem, como se reconheceu na Gaudium et Spes:
«É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à protecção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa. »
Para a doutrina jurídica, encontramos aqui direitos fundamentais e direitos sociais, de um modo que se pode dizer indivisível: a plena realização do homem implica para o Estado a realização de tarefas, como o de assegurar serviços e prestações inerentes à vida verdadeiramente humana.
A promoção da dignidade de cada homem implica a protecção da vida humana desde a sua concepção. Assim, é importante sublinhar que a Igreja não tem apenas orientações que só por excessiva simplificação se chamam anti-abortivas. A posição sobre o aborto constitui uma das consequências de se elevar a dignidade humana a fundamento da sociedade e do Estado.
Daí a importância dos deveres naturais quer do homem quer do Estado.
Daí também ser redutor reduzir o problema da participação dos católicos na vida política apenas aos temas da protecção da vida: aborto, eutanásia, casamento, família.
Os deveres naturais
4. A participação dos homens na vida política constitui, por isso, um imperativo moral, no sentido em que, sem essa participação, não será possível a existência de uma sociedade que torne possível a vida verdadeiramente humana. Esta é uma posição pacífica na política cristã de todos os tempos: o homem é um ser social, pelo que a boa organização da sociedade é indispensável para a realização plena de cada homem – nomeadamente para o cumprimento dos seus deveres enquanto cristão.
Diversos textos dão conta desta exigência, em especial, a Nota doutrinal sobre a participação e comportamento dos católicos na vida política, da Congregação para a Doutrina da Fé, que é imperativa no cumprimento da determinação conciliar: «os católicos não podem abdicar de participar na vida política», que compreende a promoção e defesa de bens como são a ordem pública e a paz, a liberdade e a igualdade, o respeito pela vida humana, a justiça e a solidariedade.
Em Portugal, a esta exigência de participação se refere Jorge Miranda nos seguintes termos:
«Os cristãos não podem fugir à política; antes a devem compreender e assumir como uma das dimensões da sua existência terrena. A política, de per si, não é, nem deixa de ser má; só o é, quando aqueles que a fazem a fazem mal ou para o mal – e, exactamente, para que isso não aconteça (ou para que aconteça menos) é que os cristãos devem participar na política.» (João Paulo II e o Direito. Estudos por ocasião do 25.º aniversário do seu pontificado).
Crise da sociedade, crise da civilização
5. Um dos textos importantes de doutrina política publicados em Portugal nos últimos anos foi a Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa, Crise de Sociedade, Crise de Civilização, de 26 de Abril de 2001. Como muitos outros textos, passou ignorado e tem vindo a ser sepultado pela banalidade e superficialidade própria da cultura de comunicação social dos nossos dias.
Como em muitos outros textos, nomeadamente do magistério do Papa João Paulo II, alerta-se para o facto de vivermos uma crise social muito grave – não apenas uma crise passageira da democracia, eventualmente resolvida com a mudança dos governos ou dos governantes.
Alguns dos tópicos fundamentais desta crise social estão identificados:
-         uma cultura da liberdade sem responsabilidade;
-         a corrupção;
-         a marginalização social;
-         a falta de confiança no sistema judicial;
-         a crise da juventude (toxicodependência e violência juvenil);
-         a falta de apoio à família;
-         a ausência de uma adequada política de educação;
-         a mediatização da vida e o surgimento de novos poderes;
-         a fragmentação e enfraquecimento do poder político.
6. Grande parte deste diagnóstico consta igualmente de textos das associações sindicais e patronais, nomeadamente da Associação Empresarial de Portugal, e de alguns movimentos cívicos mais recentes. O enfraquecimento da democracia constitui uma evidência para todos; a ausência de regras claras e a cultura do incumprimento da lei e dos compromissos reinante em Portugal tornam impossível ou pelo menos dificultam o funcionamento saudável da economia e da sociedade. Como tem apontado Bobbio, a corrosão das democracias contemporâneas assenta no assalto dos poderes de facto e nos poderes ocultos
Esta observação é igualmente válida no domínio económico. Se o mercado é jogado por jogadores corruptos, ou esses jogadores são expulsos ou os honestos terão de se adaptar a essas leis imorais para não acabarem derrotados.
De outro lado, assente a existência de uma crise social que não pode ser resolvida unicamente pela acção do governo, constitui um erro que pode ter trágicas consequências, o excesso de expectativas que os partidos políticos criam nas campanhas eleitorais. Expectativas que, em muitos casos, se adivinha serem apenas o rosto da dissimulação de programas políticos diversos. O incumprimento das expectativas criadas pelos partidos políticos, nomeadamente o excesso de promessas de prestações sociais, constitui um dos factores de crise das democracias contemporâneas.
Vivemos numa época de cepticismo ideológico e de pragmatismo social: que as promessas reformistas sejam feitas por políticos trânsfugas de muitos lados – nomeadamente do marxismo-leninismo e do maoísmo – constitui uma evidência em vários países europeus, não apenas em Portugal. As promessas vazias e absolutamente inconsequentes de reformas que todos os partidos fazem parecem levar-nos para um campeonato das «reformas necessárias» das quais apenas conhecemos o rótulo, mas de todo desconhecemos o conteúdo.
Doutrina social e participação política
7. É importante observar que a Igreja Católica de há muito desistiu de influenciar a vida política através da promoção da existência de partidos democratas cristãos. A era que começou com Pio XI e a Acção Católica está hoje no seu final. Mas não pode esquecer-se que os textos conciliares e seus sucessores acima referidos vieram trazer a lume novas questões que os católicos de todos os partidos devem compreender e que podem conhecer diferentes modos de realização, à luz do bem comum. Assim, também as formas de participação dos católicos na vida política podem ser variadas: partidos que se inspiram nos princípios cristãos; cristãos dispersos nos diversos partidos; associações e outros grupos de pensamento e de acção. Isto implica repensar os princípios e políticas cristãs para os grandes problemas da sociedade dos nossos dias: a educação, a economia, a saúde, os problemas das crianças e dos jovens, a solidariedade, a subsidiariedade da acção do Estado.
Em especial, sublinho duas grandes questões que devem estar sempre no primeiro lugar das preocupações: a família e a educação. De acordo com a matriz civilizacional cristã, trata-se de encontrar as raízes da dignidade de cada homem, à luz do bem comum. Soluções concretas para problemas concretos.
A liberdade de educação é a doutrina política e social desde a Declaração Gravissimum Educationis, de 18 de Outubro de 1965, de acordo com uma matriz em que igualmente assinalamos a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e os Pactos Internacionais de Direitos, de 1966. São fundamentalmente quatro as dimensões práticas que importa considerar a propósito da educação, e que foram mesmo elevadas a princípios normativos no Código de Direito Canónico:
-         a universalização do direito à educação, nomeadamente do acesso ao ensino superior;
-         o direito à escolha de escola por parte dos pais;
-         a obrigação do Estado apoiar financeiramente este direito;
-         a responsabilidade dos poderes públicos, subsidiária da família.
Já a protecção da família exige leis responsáveis, no plano da promoção do casamento e do respectivo vínculo, nomeadamente leis fiscais que protejam a família, a dignidade efectiva da mulher, como também a programação moralmente responsável da comunicação social. São conhecidos muitos dos obstáculos práticos, de legislação inconveniente a situações condenáveis, no plano da violência doméstica, do incumprimento do dever de alimentos e outras.
O reconhecimento da autonomia moral e jurídica da família é a resposta perante os muitos individualismos da política dos nossos dias, garantida igualmente através de uma actuação meramente subsidiária do Estado.
8. Num dos textos de filosofia política mais interessantes publicados nos últimos meses, o constitucionalista italiano Zagrebelsky questiona em Cristo e a Crucificação como se comportariam as democracias contemporâneas se Cristo aparecesse nos nossos dias e se a sentença para a sua morte e crucificação não foi o resultado de uma deliberação popular – «Crucifica-o!». Talvez não existam razões para estar optimistas. Também não se trata de defender a superioridade moral dos cristãos e da política cristã. Apenas de reconhecer o dever de agir consequentemente, recordando uma lição do filósofo espanhol ORTEGA Y GASSET: «eu sou eu e a minha circunstância; e se não a salvo a ela, não me salvo eu».

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